Um precioso feriado junto ao fim de semana possibilita uma viagem com minha família a Poços de Caldas. Tempo de lazer, descanso e proximidade com os meus. Tempo de ser marido, pai, companheiro e amigo sem pressas.
Na
praça, de frente ao hotel, instala-se uma feira de artesanato. Distração
garantida e, talvez, uns reais a menos na carteira e uns quilos a mais na
bagagem de volta. Passeio entre as barracas observando e sendo observado.
Quadros previsíveis, peças de roupas, objetos em madeira, vidro, cristal.
Coisas bonitas, originais e outras nem tanto. Uma feira como tantas outras. Depois
de olhar tudo, perguntei alguns preços, sento-me num banco da praça para
respirar aquele momento de tranquilidade e prazer.
Diante
de mim um rapaz abre no chão um pedaço de feltro e monta ali a sua 'banca'.
Anéis, colares, pulseiras vão sendo expostos. Minha curiosidade se aguça quando
o 'hippie' começa a fazer com o que se parece um colar de miçangas. Ele pega um
fio de nylon, desses de pesca, bem grosso e um saquinho de contas coloridas.
Apanha a primeira conta, amarela. Não sei por que, sinto uma certa
contrariedade. Achei que deveria começar pelo azul. Mas ele, absorto de tudo,
passa pela conta e, num gesto rápido e automático, pega outra, verde. Há uma
lógica, penso, o hippie é patriota. A continha verde escorrega pelo fio e vai
se juntar à amarela. O artista estende a mão e pega outras contas no saquinho,
sem sequer olhar. Vem uma preta, uma vermelha e outra amarela. Enfia as três
que correm ligeiras pelo fio até se encontrarem com as outras. Na sequência
contas azuis, verdes, pretas, amarelas entram pelo fio, ou o fio entra por elas
e vão formando o que me parece ser agora um caos policromático sem nenhuma
ordem ou critério. Quase me levanto do banco e interfiro quando o rapaz pega
uma conta roxa. Mas para meu alívio, o fio não entra. É grosso demais. É grosso
e o buraco da conta é muito estreito. Pacientemente, o hippie apanha um
minúsculo prego e cuidadosamente alarga o orifício da pequena conta roxa. E
logo ela corre alegremente e repousa ao lado das outras.O rapaz continua, calmo
e distraído, a enfiar conta por conta, repetindo e alterando cores, colocando a
mais brilhante ao lado de uma esmaecida e sem graça, numa sequência que parece
seguir a absurda lógica do 'por acaso'. Enfim, ele termina o colar. Junta as
extremidades do fio, dá um nó e corta as pontas que sobravam, de tal modo que
não se sabe agora onde começa ou termina. Tudo é colar...
Ele
coloca sua obra sobre o feltro e observa. Sorri satisfeito. Eu reconheço que
ficou bonito, mas não dou o braço a torcer; teria feito diferente. Provavelmente
escolheria cuidadosamente uma sequência de cores e a repetiria harmoniosamente
até o fim do colar. Ou, quem sabe, faria um colar só de contas azuis, minha cor
preferida. Preto e roxo jamais! Nem amarelo, que acho sem graça e sem vida. Levanto-me
e vou embora, combinando cores e contas em minha imaginação.
Meses
depois, participo de um retiro espiritual em Itaici, São Paulo, orientado pelo
padre jesuíta Adroaldo Palaoro. Ele começa fazendo no quadro um desenho e
colocando a seguinte alternativa: "Tudo começa e termina em Deus. Ele dá
sentido a todas as coisas". Na curva do desenho mergulho numa viagem
mágica... A cena da praça atravessa minha memória como as contas de um colar.
Neste colar colorido vejo minha vida sendo desfiada conta a conta, dia a dia.
Cada dia, uma conta. Sem nenhuma lógica aparente. Um pequeno caos cotidiano que
frequentemente foge ao meu controle, escapa aos meus planos. Há trechos do
colar que são uma sucessão de cores que se repetem. Dias de um azul clarinho,
um verde brilhante, um vermelho escandaloso, um azul forte e vigoroso
iluminando todo o colar. E logo a seguir... volta a rotina das cores que se repetem.
Olhando o colar da minha vida compreendo que a rotina é uma ilha cercada pelo
imprevisível por todos os lados.
Mas
em tudo há uma certeza: o fio... O fio atravessa e sustenta,
indiscriminadamente, todas as contas do colar. Para o fio, todas as contas
contam... a mais bela e brilhante e também a mais sem graça, aquela que eu
rejeitaria e jogaria no lixo. O Amor de Deus é o fio que sustenta as contas da
minha vida. O vazio de cada conta é preenchido pelo fio. Quanto mais grosso o
fio, mais forte o colar. O curioso é que o fio mais fino é mais prático de
usar, passa mais fácil pelas contas. O fio grosso às vezes emperra, esbarra nos
obstáculos que a conta tem. Às vezes é preciso alargar os espaços da vida para
caber o Amor de Deus. Amor...
Percebo
também que as contas ocultam o fio. Ele as sustenta, mas quase não aparece. Mas
alguma coisa me diz que ele está lá. Essa coisa de não ver e, ainda assim,
crer, tem um nome: Fé. Amor e Fé... O resultado final é um colar colorido que,
tenho certeza, vou oferecer ao Pai, de repente, quando enfim encontrá-Lo face a
face. Quando, ao unir as pontas não haja mais começo nem fim, apenas colar,
apenas vida e vida em plenitude. Esse sentimento chama-se Esperança.
Amor,
Fé e Esperança, nos dramas e nas tramas do cotidiano, o desafio é tomar, todos
os dias, o fio do Amor de Deus e deixar que ele atravesse as contas da minha
vida, todas elas, sem escolher cores e formas, nem tamanho, nem comprimento. Na
liberdade da Fé, na serenidade da Esperança.
Vi,
naquela praça, e compreendi na oração que, no Amor de Deus, até o 'por acaso'
vira 'por querer'...
de Eduardo Machado - Itaici,
08/07/98 - Exercícios Espirituais
Todas as contas contam...
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