.

.
Imagem da reflejosdeluz.net

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Oração do pai contemporâneo


 

Oração do pai contemporâneo
Artur da Távola
 
Dai-me, Deus, a luz da Inspiração. Quero educar meus filhos para a ternura, a tolerância e a compreensão do próximo. Assim tenho feito. Mas por que os ternos e os doces acabam tão raros, estranhos, quase marginais, sem chance de fazer ou criar, na dura competição da vida?
Se os educar na linha da dureza e exigência, formarei homens eficazes, atletas do saber e do fazer, padrões de êxito externo, brilho e posição. Mas os que conheço assim, sinceramente, são felizes? Como, se trocaram suas pessoas pelo papel que desempenham?
Às vezes, Pai, penso em não interferir. Deixar o que há neles de seu, de atávico, hereditário e intransferível ir ensinando. Mas venho de um tempo em que ficou moda deixar a criança entregue a si mesma “para não frustrar”. Vi esses meninos “sem frustração”, crescidos, afundando-se na desagregação, berrando solidão e o “me protege, pai”, “me protege, mãe” disfarçados em agressividade, autodestruição e negação sem afirmação compensatória.
Será que a educação de meus pais, aquela durona, do “não pode”, “não deve”, “é pecado”, “eu não quero”, “você vai ser igual a mim”, “vai seguir minha carreira”, será esta a certa? Mas quantos, Senhor, vindos dela, vi resvalar na vala da amargura, vida não vivida, revolta sem remédio?
Gostaria de só falar-lhes do amor possível, a importância do sentimento do outro, capacidade de ver e sentir o próximo, como aprendi nos livros, com os mestres e sempre tentei, talvez sem conseguir. Não estarei, assim, porém, formando um puro, mais um otário neste mundo de rapina?
Posso acentuar-lhes o senso de justiça inato. Mas não estarei formando algum suicida?
Posso ensinar-lhes mil regras do bom senso, capacidade de compreender e ajustar-se. Mas ao formar “ajustados” não estarei criando apenas mais um na multidão de concordâncias cômodas?
E se os envio ao analista? Não estarei preparando especialistas em dúvidas? Gente que compreende demais, a tudo e todos e não age nunca?
Quem sabe, Pai, limito-me a passar-lhes apenas os meus valores de vida, que herdei de meus pais e os que colhi sofrendo sozinho? Valerão, num mundo que muda a cada dez anos mais do que em todos os anteriores?
Se lhes digo o que penso, invado sua liberdade. Se nada lhes falo, peco por omissão. Se discuto, acabo impondo. Se imponho, esmago. Se calo, consinto. Se consinto, acabo perdendo-os e isso não saberei suportar.
Se lhes exijo estudo, sei que vou formar quem, amanhã, pode me perguntar por que tanta ciência se a vida natural é mais saudável. Se os tiro do colégio, serei responsável por uma ignorância perigosa, amanhã.
Dai-me, Senhor, a luz de um caminho, uma honesta opção para quem, como eu, sabe do mundo, conhece-lhe as esperanças, grandezas e também as curvas da emboscada, alguém que aspira ao absoluto e aos valores nos quais, teimoso, não deixou de crer. Sou homem aberto ao mundo e ao novo, disposto a examinar a vida sempre vendo todos os seus lados. É mais fácil escolher um dos caminhos, negando os demais.
Mas é exatamente por isso que o homem vive em guerra...
Ajudai-me, Pai, a descobrir e aceitar que muito ajuda quem deixa florescer, sem tanto intervir.
 
Artur da Távola

Nenhum comentário:

Postar um comentário