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quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mantras

Fonte: www.vidasimples.abril.com.br

A luz dourada difusa pela fumaça do incenso ilumina o rosto do homem que está sentado ao meu lado durante a missa na igreja de São Bento, em São Paulo. De olhos fechados e rosto sereno, ele parece murmurar algo enquanto ouve o suave canto gregoriano dos monges beneditinos. No fim da cerimônia, pergunto o que ele rezava com tanto fervor. A resposta inesperada me deixa com cara de berinjela. “Estava meditando. Meditando dentro da tradição cristã. ”Como assim, meditando dentro da tradição cristã? Meditar não é monopólio dos budistas, dos hinduístas? Como ninguém nunca me falou disso antes? Fiquei com a impressão de que havia uma festa em algum lugar e tinham esquecido de me convidar.
Há oito anos, quando isso aconteceu, minha ignorância sobre o assunto era considerável. O pior é que, sem saber, estava perdendo o que de melhor o cristianismo poderia oferecer ao meu coração, ainda católico, mas já impregnado pela visão budista do mundo. Naquele momento desconfiei de que estava para começar um caminho novo ali, pouco conhecido, mas que alguns buscadores espirituais de coração sincero já haviam trilhado anteriormente. Resolvi ir atrás dele.
O primeiro livro que encontrei sobre esse assunto tem nome tão poético quanto intrigante: A Nuvem do Não-Saber. Foi escrito no século 4, provavelmente por um monge beneditino. E o que diz esse belo livro? Que o amor de Deus, como os raios de sol, precisa ultrapassar as nuvens espessas do nosso pensamento para chegar ao coração. Para isso, é preciso deixar-se envolver pela nuvem do não-saber, esse estado vazio do não-pensar. Uma maneira fácil de chegar lá, diz o autor, é repetir uma frase até a mente se tranqüilizar. O monge sugere abandonar qualquer tipo de imagem ou pensamento, mesmo o mais fervoroso. E indica: “Tome uma só palavrinha, de uma sílaba (...) Prenda essa palavra ao seu coração, de modo que, aconteça o que acontecer, ela jamais saia dele”.
Ora, ora, ora. O monginho cristão fala as mesmas coisas que um mestre budista diria ao ensinar meditação por meio da repetição de um mantra. Essa modalidade de meditação, segundo mestres da Índia, é a mais adequada para nossa época, por sua simplicidade e eficácia. Fiquei sabendo depois que, no tempo do autor do livro, uma palavra muito usada era “Yêshua”, o nome de Jesus em aramaico, ou “maranata”, que significa “Vinde, Senhor”, comum ainda hoje. Com a repetição, as palavras se tornam não-conceituais e viram apenas um meio para despertar outra realidade interior.
Durante séculos, desde o tempo dos primeiros monges católicos (entre 300 e 600 d.C.), a meditação fez parte do cristianismo. Era chamada de oração do coração ou, ainda, de oração centrante ou perpétua. Mas, dentro da tradição cristã, quase não se usava o termo “meditação” para designar essa prática contemplativa. Na linguagem cristã, meditação está mais relacionada à reflexão e análise. Ou seja, é um sinônimo de pensamento, e isso pode causar enganos. Muitas igrejas – evangélicas, na maioria – anunciam grupos de meditação cristã, onde se estudam racionalmente textos bíblicos. Já os grupos que utilizam a oração como exercício meditativo estão mais ligados à Igreja Católica e à Ortodoxa, que sempre preservou essa prática entre padres e monges. Trata-se de uma tradição perdida para os leigos no correr dos séculos e só recentemente recuperada.
Fonte cristalina
Há livros muito antigos que descrevem a meditação cristã, como Conferências de Abba Isaac, do século 5. Foi escrito por João Cassiano, jovem buscador que abandonou livros e manuscritos para ir atrás dessa sabedoria. Num monastério longínquo, conheceu o abade Isaac. O velho religioso, que seguia a tradição dos primeiros monges cristãos, descreve com detalhes como rezar – e, mais uma vez, lá está uma descrição clara da meditação. “Talvez surjam pensamentos errantes na minha alma, como o borbulhar da água que ferve, e eu não possa controlá-los nem oferecer preces sem ser interrompido por imagens tolas.” Mas, em seguida, vem a solução: “Preciso dizer então: ‘Deus, vinde em meu auxílio. Senhor, socorrei-me sem demora’”. Com a repetição dessa frase, conta o abade Isaac, “a mente se eleva ao múltiplo conhecimento de Deus, e daí em diante se alimentará dos mistérios mais sublimes e sagrados”.
Esse êxtase foi descrito por vários místicos cristãos, como Teresa d’Ávila, San Juan de la Cruz e Meister Eckhart, cujos relatos nos comovem até hoje. Mas, convenhamos, será que isso é coisa para gente como eu e você? Não é algo muito distante de nós?
Como não sabia responder a essas perguntas, um camponês de alma inquieta nascido na Rússia foi atrás de um mestre espiritual que lhe desse um método seguro para sentir Deus no coração. Como muitos de nós, tinha deixado de ir à igreja, pois não conseguia ter a experiência de Deus ali. Haviam dito a ele que Deus é luz clara e pura. “Mas, com a mente agitada, atribulada, como reconhecer essa verdadeira luz?”, pergunta.Também falaram que Deus é amor.“Mas como amar?”, pensa, aflito. “Tenho a palavra amor nos lábios, mas não sinto seu sabor no coração.”
Nesse ponto começa o livro Relatos de um Peregrino Russo, publicado em 1884 por um autor anônimo. Na história, o mestre propõe ao peregrino a recitação da oração do coração, vinda da tradição dos antigos monges católicos no Egito. Consiste em sentar-se em silêncio, aquietar a mente e dirigir a atenção ao coração, procurando trazer a respiração ali, sentindo seu efeito. E, ao fazer isso, murmurar ou pensar nas palavras: “Nosso Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim”. Como água em pedra dura, a repetição vai amolecendo o coração do peregrino, “aprofundando- se em sua carne”. Ele repete as palavras três, seis, 12 mil vezes ao dia. E passa por vários estados, do desconforto e preguiça iniciais às primeiras sensações de calor no peito, a purificação vinda pelas lágrimas, o sentimento de união com o mundo, a abertura para a paz, até atingir a experiência do amor divino – justamente o que propõem os grupos de meditação cristã hoje.
“O cristianismo reconhece que o pensamento, por si só, é incapaz de ocasionar uma mudança profunda na natureza humana”, escreveu Jacob Needleman, no livro O Cristianismo Perdido. O autor relata que São Simeão dizia que objetivo fundamental do trabalho espiritual é despertar o coração. “Na verdade, não conhecemos o coração; é isso o que devemos descobrir. Mas esse pormenor quase nunca é considerado em toda a literatura mística cristã”, afirma Needleman.
“Todos nós podemos experimentar esses estados de comunhão, às vezes por poucos segundos. Mas é possível senti-los,sim”, afirma a professora paulista Beatriz Assunção, que há cinco anos pratica a meditação cristã. Ela repete mentalmente a palavra “maranata” em sessões de 20 minutos de manhã e à noite, seguidos de 10 minutos de silêncio, que ela acrescenta por conta própria. Pessoalmente, prefiro repetir “Yêshua”, palavra tida como de grande poder pela Igreja Ortodoxa.
O caminho do Oriente
Por ironia, foi preciso um mergulho no Oriente para que os cristãos voltassem às raízes. Um dos primeiros desbravadores foi Thomas Merton (1915 - 1968), monge trapista nascido na França, filho de artistas e criado na Inglaterra e nos Estados Unidos. Amigo de filósofos e escritores, Merton foi várias vezes à Ásia e não tinha medo de confrontar suas crenças ao budismo ou ao hinduísmo. Seus livros, em que destaca as práticas contemplativas, fizeram sucesso na primeira metade do século 20. Seguindo seus passos, o monge beneditino John Main também se perguntou se dentro do cristianismo não existia algo parecido com a meditação e acabou descobrindo o passado de sua própria religião. Em 1975, fundou a Comunidade Mundial de Meditação Cristã, atualmente em mais de 50 países – Brasil inclusive. O movimento hoje é comandado pelo beneditino dom Laurence Freeman, ex-jornalista dedicado ao diálogo inter-religioso – é dele o livro O Dalai Lama Fala de Jesus.
Aliás, a abertura a outras religiões pode ser uma das conseqüências das práticas contemplativas. “A experiência mística une as religiões porque se refere a um sentimento comum a toda a humanidade. A doutrina, a razão, separa”, acredita o padre e filósofo alemão James Heisig, que vive há 20 anos no Japão, onde fundou um instituto que estuda o budismo zen e o cristianismo.
O padre belga Jean-Yves Leloup, da Igreja Ortodoxa, é outro grande nome que, como Freeman, vem freqüentemente ao Brasil comandar retiros de meditação. Leloup sabe do que fala quando se refere a experiências místicas. Ele se converteu ao cristianismo depois de uma vivência espiritual marcante na igreja de Santa Sofia, em Istambul. Se ainda não chegamos a esse nível, não tem importância. As experiências no caminho da meditação cristã já são suficientes para tranqüilizar a alma e abrir cada vez mais o coração a Deus.
Para quem quer começar
O método abaixo é adotado pela Comunidade Mundial de Meditação Cristã. Não é a única prática espiritual cristã que envolve meditação, mas é muito boa para quem quer começar.
1 Sente-se numa cadeira com a coluna reta, mas sem tensão. Deixe a cabeça alinhada com a coluna.
2 Retraia ligeiramente o queixo, o que ocasionará uma leve inclinação da cabeça.
3 Deixe os braços e mãos relaxados sobre as coxas.
4 Procure deixar o corpo descontraído, eliminando tensões.
5 Sinta o silêncio por alguns minutos.
6 Inspire e repita mentalmente a palavra “ma-ra-na-ta” (“Vinde, Senhor”), em quatro tempos: na primeira inspiração, diga “ma”; durante a expiração, fale “ra”; na segunda inspiração, diga “na”, e na expiração, “ta”.
7 Procure centrar seu pensamento nas palavras e volte a elas toda vez que estiver distraído. Comece meditando por 5 minutos e chegue até 20 minutos, pelo menos duas vezes por dia, ao levantar e ao dormir. A prática também pode ser feita durante as atividades do dia. Muitos preferem se ligar a um grupo de meditação – sozinho é mais difícil manter a disciplina.
PARA SABER MAIS
LIVROS
• A Oração Centrante, M. Basil Pennington, Palas Athena
• Escritos sobre o Hesicasmo, Jean-Yves Leloup, Vozes
• Introdução aos Verdadeiros Filósofos, Jean-Yves Leloup, Vozes
• Os Olhos do Coração, Laurence Freeman, Palas Athena
• Seis Polegadas Acima da Terra, James Heisig, Loyola
NA Internet
• Site brasileiro da Comunidade Mundial de Meditação Cristã: www.wccm.com.br
• Traduções e referências ligadas à oração centrante: www.oracaocentrante.org

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